Nobel ou Dylan

 

Haverá dois factos que levam a que a atribuição do prémio Nobel a Bob Dylan seja mais discutida do que casos anteriores. O primeiro, ser o autor muito conhecido, figura popular, familiar para muitos, ao contrário de todos os outros prémios Nobel – exceção feita ao agora também ressuscitado Winston Churchill. O segundo, dever-se a sua fama não à literatura mas à música (“popular”). A conjugação de ambos levou a que se lessem argumentos a favor e contra que dizem muito sobre a vontade de quem os disparou.

De uma forma muito esquemática classificam-se os que são contra a atribuição do Nobel como defensores da preservação da nobreza de uma arte e da sua tradição, e os que são a favor como gente que procura abrir fronteiras e nisto encontrar lugar para minorias deitando abaixo os muros elitistas ou normativos de uma hegemonia poderosa. O Nobel para Bob Dylan serviria assim como símbolo de uma pequena revolução de mentalidades, etc. Houve outro tipo de argumentos, casos intermédios, gente que não se coloca claramente de um ou de outro lado, falam de desperdício ou dizem-se contentes e por aí fora, mas claramente as discussões mais acesas, como aliás seria de prever, caminharam e caminham neste eixo que discute fronteiras entre artes e identidade.

É porque Bob Dylan “é músico” que uns consideram o Nobel desajustado e outros certeiro. É porque Dylan é músico que uns dizem que assim se abre caminho a que os próximos sejam Leonard Cohen, Eminem ou …, e é porque ele é músico que se invoca Christopher Ricks, teses de doutoramento, história da literatura (os bardos, cantigas de amigo…) ou livros vendidos. Discute-se a qualidade do que Dylan escreveu apontando para estrofe ou verso e sublinhando: isto é literatura! Ou, pelo contrário, com o indicador ainda: isto não é literatura! E discute-se pois por arrasto o que é e não é a tal literatura, como se recuássemos 100 anos a um modernismo imberbe. Mais: apesar de noutros contextos se admitir sem pudor a dificuldade em distinguir qual é a melhor e a pior literatura, num caso como Dylan, dada a fragilidade da posição em que é colocado, ele só pode ser ótimo ou mau[1], só pode ser poeta ou não-poeta. É a sua genialidade que merece o Nobel, é a sua popularidade (é pop) que o desmerece.

De acordo com estas vontades, Dylan está refém de uma ideia de identidade que dá a mão às categorias, aos géneros, às caixas. Ser músico, ser poeta, ser mulher, ser pessoa, ser. Este é o lugar onde se sabe o que é e o que não é, o lugar onde tudo já é o que pode ser ou não ser. Não ser é propor a revolução, é inventar a novidade, é alargar a fronteira. Tanto o ser como o não ser exigem congruência, perfeição, porque são objeto de escrutínio violento pelas vontades que o habitam.

Por isso argumentar contra uma visão conservadora da literatura, que exclui Bob Dylan do seu campo, afirmando “Dylan é literatura” significa jogar no mesmo tabuleiro do que se contesta, validando e reforçando um esquema que não serve nenhuma identidade. É esta a contribuição do Prémio Nobel: tornar visível e eventualmente fortalecer uma ordem que sujeita e captura identidades e cujo poder parece ser difícil se não mesmo impossível de contestar.

Perante o nó górdio em que se acha enredada a discussão à volta deste prémio, e de onde Nobel parece sair sempre a ganhar, o gesto mais estimulante que observei nos últimos dias foi o de uma espécie de aparente negligência (e não recusa) de Bob Dylan, remetido a um silêncio que nem parece ser silêncio mas simples desinteresse. Este gesto que, admito, pode vir a revelar-se ser outro e não o que dele entendo, desloca-se do eixo literatura ou não literatura, do merece ou não merece, do é bom ou não é bom, e posiciona Bob Dylan num lugar de onde é capaz de colocar em causa a identidade do prémio, da academia e da instituição, devolvendo como um espelho o poder que sobre ele é exercido.

 

[1] O desequilíbrio ou falta de simetria entre os adjetivos nos dois eixos (ótimo vs. mau – e não péssimo) justifica-se pelo facto de Dylan ser um underdog, um estrangeiro a tentar vingar no terreno alheio.

O poder,sim….estar vigilante

Miguel,

a questão que colocas neste último texto é crucial: que fazer com o poder do programador? Sim, porque não se pode ser ingénuo ou cínico escamoteando o poder do programador. Diferente conforme o estatuto, o dinheiro de que dispõe, as redes a que pertence, o poder simbólico e financeiro da instituição ou organização para a qual trabalha, seja a oficial de grande escala, seja a da pequena escala mas rebelde, combativa, que tem como missão desconstruir o poder….Fingir que isto não existe é de uma enorme desonestidade intelectual e enganar os seus múltiplos parceiros. Mas é sabido que a arte e o dinheiro sempre estiveram associados – não por acaso a moeda é simultâneamente o objecto de introdução do mercado financeiro e uma materialização artística. E o dinheiro e o seu poder e a arte e o seu poder constituem os núcleos narrativos das histórias das artes. A este propósito seria bom rever essa peça notável de Jan Fabre “”The Power of Theatrical Madness”de 1984,  https://www.youtube.com/watch?v=ItGNRRrfWw4, uma das mais lúcidas obras sobre a relação do poder da arte e do dinheiro.Portanto o poder, ou melhor, a relação a ter com o poder é a questão de fundo. E sobre isto a minha posição é clara: ter o poder de decidir, de incluir , que é também de excluir, é certo, é fundamental para poder programar. E quer o programador se reclame de autor, com uma assinatura e um programa contratualizado com múltiplas partes (organização, públicos, artistas, produtores) quer se pretenda afirmar como neutro, situação que não acho credível já que não é possível não escolher e também não é possível reclamar-se de representante de públicos ou de artistas, tem sempre o poder e os instrumentos de decisão. E assim sendo parece-me muito mais correcto afirmar e declarar quais são as suas linhas programáticas e a razão das mesmas, sabendo que ao longo das temporadas estas linhas “vão procurando” outros problemas artísticos,autores, temas. Também não acho desejável que cada programador queira ser absolutamente diverso, multicultural, multidisciplinar, multi ..tudo …no propósito de que a diversidade seja total e real. A diversidade desejada para uma cidade deve sim resultar da multiplicidades de programações diferentes entre si, singulares e muitas vezes em tensão criativa.

Finalmente um comentário às obras “encomendadas”. Como tu bem sabes ter a possibilidade de produzir obras novas no contexto de uma programação faz parte da realização plena do acto de programar. E não e não sendo nada de novo, os protocolos têm sido diferentes ao longo da História. tempos houve em que depois de realizada a obra pelo artista , este nem sequer figurava como o autor da obra mas o nome que aparecia era o do mecenas…e não é tão estranho quanto isto. Basta para o confirmar consultar uma boa história da arte do Renascimento ou do Teatro medieval. E que tipo de reportório barroco ou romântico teríamos sem as encomendas? e os modernistas e os regimes políticos? e o que seria do cinema americano, mesmo do bom cinema americano? O que está em causa é o protocolo do acordo da encomenda que não passa necessariamente por impor ao artista o tema, os colaboradores, as condições de produção mas,sim, fazer a “negociação cultural” na expectativa de que o resultado seja uma “obra nova”. às vezes acontece, outras vezes não. Às vezes as expectativas são cumpridas do ponto de vista de todos os envolvidos, outras vezes, nem por isso. E não necessariamente por responsabilidade da encomenda porque nem os programadores são necessariamente uns seres maldosos, nem os artistas absolutamente angélicos. E para acabar este comentário que mais uma vez agradeço teres provocado: essencial mesmo é estar vigilante com o poder que se tem, tarefa que não é fácil, nem atitude óbvia como o sabemos de outros campos de actividade.

 

De novo sobre programadores

Não me fiz entender. Isto está a acontecer-me com demasiada frequência. Receio que seja pelo estilo que uso. Mas pode ser simplesmente porque não me explico bem.

Quando eu perguntei se vinha mal ao mundo caso os programadores se finassem, não estava a querer matá-los. Era uma provocação que introduzia o tema seguinte: não estão já os programadores a abdicar de serem programadores? A suicidarem-se. E aí entroncava a história da uniformidade em que a escolha é transferida para outros, seja um coletivo, seja uma moda, seja o que faz quem define internacionalmente o que é bom ou não. Assunto que o António Pinho Vargas tem glosado em abundância.

Nao defendo a eliminação dos programadores, não. Também pela razão que apontei: os programadores são fundamentais para a diversidade da vida cultural. Desde que façam bem o seu trabalho.

Esclarecido este ponto, e agradecendo a tua síntese sobre a origem histórica e o desenvolvimento que a função do dito teve.

Mas este tema, que te apaixona e sobre o qual tens produzido vária reflexão, tem muto por desbastar. Gostava de sobre ele continuar a nossa conversaa é Queria , há um ponto (talvez dois depende de como me explicar) sobre o qual ainda queria continuar a conversar contigo.

No texto anterior referes-te a programador autor, depois insistes na necessidade de um programa e neste falas em programar o que ainda não aconteceu, ou coisa do género.

Eu estou de acordo contigo em todos esses pontos. Ao mesmo tempo acho que é preciso ter muito cuidado com a arrogância, com o abuso de poder, para que os programadores podem ser tentados.

Arrogância perante o público, as pessoas a quem as escolhas são oferecidas. Deixa de interessar completamente a adesão das pessoas para se considerar como mais importante o próprio programador e o seu programa, tenha ele ou não aderência à realidade. Nessas hipóteses programa-se não para as pessoas, mas para si próprio, para a sua vaidade e para os seus pares.

Há ainda que pensar se a ideia do programa é entendido por alguém para além do programador e dos seus pares. Isto é, se público e artistas a entendem e a ela aderem.

A oura face desta moeda é uma espécie de imposição que se faz aos artistas sugerindo-lhe o que devem criar e até discutindo com eles o seu trabalho ao longo da criação, para que cumpram as diretivas do programador. Sei bem que sugestões de criação podem dar origem a obras excelentes. Aquilo para que estou a chamar a atenção é para um excesso. Do meu ponto de vista o criador está sempre acima daquele que escolhe. A liberdade de criação deve ser respeitada ao máximo. Mas é claro que dar o mote para a glosa é coisa boa.

Muitas vezes os artistas aceitam propostas porque se não o fizerem, não trabalham. Alguns vão dando a sua volta, porque têm força interior para isso. E talento. Propõem-lhes, aceitam, e a seguir fazem o que entendem. E lá se vai (ou não?) o domínio do programador.

Um programa não pode ser muito estanque e rígido, acho eu. O mesmo programa executado por pessoas diferentes, leva a diferentes resultados. Ou seja, se julgo essencial que o programador (a repetição excessiva deste nome já me está a irritar…)tenha uma ideia estruturada que fundamente as suas escolhas, entendo igualmente que tem que ser maleável e atento à realidade da criação, para que o seu trabalho seja bem feito.

Continuamos esta conversa, mesmo sem que os nossos amigos se juntem a nós ou iniciem outro tema?

Também podemos falar dos Mirós…

Limites à programação e diversidade ou ausência dela….

Miguel, vou tentar responder às questões pertinentes que colocas. Começo por tentar ser mais preciso relativamente ao contexto em que os programadores actuam hoje em dia. Esta figura nasce no final da década de 70 do século passado, a que corresponde a globalização e tem consequências na produção do pensamento,  na economia, claro, nas  novas relações de trabalho e na revisão da herança política e social da Modernidade europeia e que em termos breves se designou pós-modernismo ou, mais precisamente, pós-modernismos. Foi uma época de euforia que acabaria por contaminar a política (o Muro de Berlim caíu em 1989) e permitiu rever as utopias a longo prazo para as transformar em narrativas de realização humana a médio prazo. Substituía-se assim as famosas “grandes narrativas históricas” pelas pequenas narrativas de execução verosímil. É aqui que entre também essa figura do programador que já poderia não ser o director de pessoal e das artes – em acumulação – oriundo da revolução industrial e traz com ele a possibilidade de criar narrativas de programas artísticos credíveis de serem executados e terem impacto social e político a médio prazo. Já não prometia utopias num futuro longínquo mas a democracia cultural e a acessibilidade artística a criadores e públicos num prazo de vida possível de ser vivido.

Ora, como hoje sentimos e aprendemos, novos factos vieram alterar este estado de promessa de felicidade ou da suprema realização humana que é a tragédia e vivemos a decepção pós-muro de Berlim, a supremacia da globalização dos mercados financeiros sobre o trabalho, o ataque às Torres Gémeas em NY, a falência do Lehman Brothers com que se inicia a época de maior pessimismo e de menor crença na capacidade de realizar qualquer programa político passível de ser credível no mundo actual. E assim também a programação artística e ou cultural (que nem sempre são sinónimos) é também afectada por esta dúvida permanente e este pessimismo parasitário e as artes subjugam-se aos decisores do marketing financeiro e ao populismo político

Sobre o desaparecimento dos programadores aqui estou em desacordo contigo. Não era só mau para eles como dizes. Do meu ponto de vista os programadores são fundamentais porque é fundamental que haja mediadores cultos, informados, atentos, capazes de nos colocarem em permanente contacto com o que vai acontecendo seja em pequenas cenas alternativas,seja nos palcos de referência mundial e que sejam capazes doque ainda não existe antes de ser programado . Desistir dos programadores seria o mesmo que dizer que já não são precisos jornalistas porque todos podemos ter acesso ao que circula no mundo virtual ou que todos os editores de livros se poderiam dispensar porque qualquer pessoa pode (poderá?) hoje publicar o seu livro e qualquer leitor ler o que lhe apetece. Não me esqueço nunca de pensar no que teria sido Portugal se não tivesse havido a Madalena Perdigão –  a primeira programadora portuguesa – ou a Frie Leyson não tivesse criado todas as programações que criou, de entre as quais a mais conhecida foi o Kunstenfestivaldesarts.

E finalmente subscrevo tudo o que dizes no que diz respeito à ausência de diversidade nas programações portuguesas e, em especial, em Lisboa com essas demagogias a que se chama sinergias em permanência, “artista na cidade”, cumplicidades. ..sim , eu creio que cada instituição ,equipamento ou organização deveria criar o seu próprio programa e caso o mesmo fosse redundante, então não haveria razão para existir. Mas como sabes há múltiplas razões, umas mais óbvias que outras. Penso que a falta de ousadia, o medo de arriscar a partir do zero, o provincianismo, o facilitismo e a falta de recursos são algumas delas.

 

 

Convesando sobre Requiem dos Programadores

No teu texto, António, apontas duas causas para o possível desaparecimento do programador. Uma, julgo que não percebi. O que queres dizer com o não ser hoje possível criar um programa? Podes desenvolver este ponto? Se não foi isso que escreveste podes tentar explicar-me o que queres dizer?

Sobre a segunda causa, concordo contigo. De um ponto de vista ligeiramente diferente do teu, ou utilizando apenas outra expressão, julgo que se pode falar do triunfo das audiências.

Como o que interessa a museus, centros culturais, teatros, festivais (daqui em diante falo só de teatros para designar estas coisas todas) é o número de visitantes ou espectadores, o papel do programador vai-se limitando a escolher o que foi escolhido por outros: os administradores, os financiadores, os departamentos de marketing (li vários livros de marketing cultural que defendiam que o pessoal dos departamentos de marketing devia ter uma palavra a dizer sobre o programa das exposições. Tal como acontece numa empresa: o marketing estuda as necessidades das pessoas que a empresa pode satisfazer e os produtos que as satisfarão, etc.; estou a simplificar).

[Um parêntesis. Também li, quando há uns aos estudei sobre Museus, gestão de museus, etc., que os Serviços Educativos deviam participar nas escolhas das exposições, na sua conceção e na sua apresentação ao público. Havia também aqui, além de outras, uma razão quantitativa: se a “experiência” for muito satisfatória, a probabilidade de virem mais pessoas aumenta. Mas é claro que há também uma genuína preocupação em ajudar as pessoas a apreciar uma obra. Uso o parêntesis como hipótese de trazer uma outra cereja para a conversa].

O teu texto fez-me pensar: pois é,os programadores se calhar vão desaparecer. E que mal faz? Quem perde com isso, para além dos próprios programadores?

Do meu ponto de vista, programadores com liberdade de escolha são fundamentais para garantir a diversidade cultural seja para os artistas, seja para as pessoas que querem ver o que eles fazem. E a diversidade é indispensável à vida.

Às vezes interrogo-me se a diversidade não está a ser reduzida, não pela pressão do público, das audiências, mas por obra dos próprios programadores.

Explico-me, notando desde já que não tenho dados empíricos sérios que confirmem a minha hipótese, que pode não se verificar.

Diz-se com frequência que há curadores ou programadores com muita influência mundial, ou europeia, ou nacional, que definem o que deve ou não deve ser visto ou a que se deve ou não dar atenção. Há certos teatros (no sentido amplo que dei),ou programadores deles,que têm uma capacidade de dizer o que os outros programadores devem apresentar. Comparando programações vê-se que há uma repetição de determinadas obras ou artistas e, reciprocamente, olhando para certas obras ou artistas, vê-se que estão presentes em vários teatros. Na minha opinião essas coincidências não se justificam sempre pela importância das obras.

Uma outra autolimitação dos programadores decorre das parcerias, das redes, das “cumplicidades” (nunca gostei desta palavra porque a aprendi na faculdade, na disciplina de direito penal, para designar a coautoria de um crime. Há muitos anos, mais de vinte, que a oiço para designar afinidades ou colaborações, mas eu não consigo usá-la).

As redes e as colaborações, muitas vezes dentro de espaços geográficos restritos, parece justificar-se por proporcionar a certos artistas a possibilidade de, por um lado, fazerem obra com mais meios financeiros e, por outro, mostrarem a sua obra a pessoas em sítios diferentes. Essas duas coisas são boas. Com uma consequência perversa que se agrava tanto mais quanto as redes se multiplicarem: e os que ficam de fora? Os que não beneficiaram dessa conjugação de gostos e por isso não têm a mesma oportunidade ou nunca a terão? Dá-me que pensar.

As colaborações entre teatros dentro de uma zona geográfica, por exemplo dentro da mesma cidade,também tem uma boa justificação a que se costuma dar o nome horroroso de “criar sinergias”. Quer-se dizer que assim se poupa (por exemplo, na promoção), e assim se cria um ambiente favorável a que mais pessoas vão ver o que se escolheu, procurando-se que quem vai habitualmente a um teatro, vá a outro.

Enfim acho que já vai longo e estou a tomar tempo demais.

A minha acha para a fogueira da conversa sobre este tema, em resumo: é possível que o programador esteja a desaparecer. Mas não será também verdade que o programador autor, como lhe chamas (confesso que resisto a esta expressão, mas essas são outras histórias) está a perder autonomia, e por isso está a desaparecer, não por intervenções externas, mas antes vindas do interior deles próprios?

O que é que achas? Ou seja, que achas atiras tu agora, se entenderes que a conversa merece continuação? Quem diz tu, diz outro qualquer que queira dar a sua opinião.

Requiem pelos programadores

Requiem pelos programadores

É um texto pessimista para iniciar esta colaboração neste blog, mas é sintoma do tempo actual.
Na vida de um programador, em todo o caso daqueles que assumem o direito de escolher e uma postura autoral, acompanha-o uma angústia permanente que é a de produzir cultura e simultaneamente a de resistir a esse fenómeno de culturalização do mundo, a face mais massificadora da democratização cultural que não a da democracia cultural que esta, ao contrário do facilitismo da primeira, exige estudo, entrega, trabalho intelectual, aprendizagem de códigos iniciáticos.
Nos tempos presentes para esse programador que é um herdeiro de muitas figuras – do intelectual iluminista mais generoso, do comissário franco-leninista, doa director artístico dos tempos da revolução industrial e do activista intelectual do início dos tempos pós-modernos – o seu fim está próximo. Razões imediatas: a ideia de “programa” como a possibilidade de realização social e política a médio prazo e com algum futuro como horizonte tornou-se difícil de admitir. O espaço e o tempo deixaram de ser apriori e passaram a ser concebidos como categorias a posteriori, indeterminadas portanto.
E concomitantemente com este aspecto deve acrescentar-se por mor da democratização cultural e da demagogia a ela subjacente a omnipresença do espectador-consumidor que passou a ser o avaliador e decisor das programações culturais: os museus pôem à votação on line que tipo de exposições os internautas preferem e elegem, a quantidade de likes indica a obra selecionada da exposição, feira de arte, bienal e o seu valor de mercado explode, as administrações dos Centros Culturais impõem objectivos quantitativos para assistência de públicas com correspondente aumento ou diminuição de orçamento para as escolhas do programador. E o mecenato (e o caso português é um dos piores exemplos porque o Estado tanto se tem demitido de intervir com políticas culturais para o século xxi) que até a esquerda tanto elogia impõe cada vez mais os seus artistas, as condições de apresentação dos mesmos e o formato do programa como há alguns anos seria impensável. Não é pois de estranhar que entra a bienalização – estratégia dos mediadores das artes visuais com vista a servirem o mercado – e a gratuitidade de arraias e festivais – com vista a servirem a estratégia comercial das marcas e dos políticos populistas – a tarefa do programador deixa de ter lugar. Restar-lhe-á porventura intervir numa pequena zona das artes políticas e da resistência à culturalização….se sobreviver, claro.

Bolsa – Cada guru, a sua aposta

Li no Jornal de Negócios de hoje, 29/08/16, uma notícia com o título acima.

Fala dos êxitos e insucessos de “alguns dos maiores investidores em bolsa no mundo”. No site da Bloomberg, que nunca tinha visitado, há uma lista das 100 pessoas mais ricas do planeta (não fiz contas, mas são quase todos homens) atualizada todos os dias com os ganhos e perdas de cada uma em cada dia. Não investiguei mais. Presumi que para se poder concluir esses ganhos e perdas com tanta facilidade é porque a riqueza, para esse site, se mede pelo valor dos ativos financeiros que em cada momento detêm e que todos os dias se transacionam.

Estas informações sugeriram-me interrogações que gostava de partilhar convosco.

Uma delas é a mania dos rankings. Há rankings para tudo e mais alguma coisa. Admito que se ache que eles são um estímulo à competição.  Para muita gente a competição é o motor da vida em sociedade. É o que faz mexer, o que faz mudar, o que faz “progredir”. Não se admitem, ou desconsideram-se, outros “motores”, como a generosidade, a curiosidade, a vontade de fazer melhor por si próprio (sem confronto com o outro), a vontade de fazer bem aos outros, o reconhecimento que esse bem fazer pode gerar, etc. etc. A cultura do ranking tem razões e tem consequências. Gostava de saber pensar melhor sobre isto.

Os rankings  podem servir para se conhecer a realidade. Uma parte da realidade, evidentemente.

Em tempos tive uma discussão no Facebook com o Francisco Frazão sobre as listas dis 10 melhores do ano do Público e do Expresso. Dos 10 melhores espetáculos de dança, de teatro ou de exposições. Exaltei-me (estava numa altura da vida em que isso me sucedia com frequência) e a discussão descambou. Já não nos líamos um ao outro. É assunto a que um dia gostava de voltar.

Por agora e quanto à utilidade deste ranking dos ricos, dos especuladores na bolsa, refiro-me um pouco mais à frente.

Antes disso, pergunto-me porque se dá uma notícia destas. Porque é que se acha que dizer o que os riquíssimos ganham ou perdem na Bolsa é relevante para o leitor de um jornal de temas económicos. A primeira resposta que encontro, talvez superficial, é que o leitor vai em busca de haver na notícia informação que lhe sirva para aplicar as suas poupanças, mesmo que reduzidas. Se o Soros, que está sempre a ganhar na bolsa, apostou desta maneira, se eu fizer o mesmo talvez também beneficie. Mesmo que eu não tenha dinheiro, posso sempre sonhar, como quando jogo no euromilhões, o que faria se o tivesse.

É claro que as coisas não são assim. Nenhum de nós é o Soros. E se todos fizessem como ele, o sistema não funcionava. O sistema só funciona com ganhos e perdas. E estes “gurus” ganham e perdem. Sendo que alguns parece que estão sempre a ganhar. O Senhor Soros, e outros, fazem parte destas listas há anos e anos.

Uma notícia destas pode ter utilidade. E aqui retomo a interrogação sobre para que servem os rankings. É  que notícias dão-nos a conhecer um pouco do funcionamento do mercado financeiro e , sobretudo, personalizam-no. Esse mercado tem rostos. Não é uma abstração como quase sempre nos é impingido. É formado por pessoas. Estas pessoas. Os mais ricos de todos. São poucas em percentagem da população (poucas, não, pouquíssimas).  Mas são estas pessoas, por si ou pelos seus intermediários, que comandam o “capitalismo financeiro”.  Tudo gente  respeitável. Alguns, como Bill Gates, mudaram o mundo para melhor e são filantropos. Saber quem são é útil? Acho que sim, por variadas razões que agora não dá para desenvolver. Mas uma eu gostava de mencionar: é útil saber que a economia e o seu funcionamento é uma criatura dos homens. Não é uma realidade que nos ultrapassa. Se sendo uma criatura dos homens, podemos moldá-la. Resta saber como, evidentemente. .

 

Divulgar espetáculos

Este post não deveria ser o primeiro a surgir quando se abrir o blogue. Mas as regras são estas. O primeiro a aparecer é o último a ser escrito. Aqui, os últimos são os primeiros.

Transcrevo trechos do editorial que escrevi para o Programa de Setembro/Dezembro da Culturgest, por me parecer, evidentemente, que vale a pena c0nversamos sobre o tema ou,  a partir dele, derivarmos para outros. O texto não está bem escrito e só trata de alguns tópicos do tema. Mesmo assim, aqui vai ele:

Os centros culturais, teatros, museus, festivais, etc., que oferecem espetáculos, exposições, sessões de cinema, concertos…, têm que falar deles às pessoas. Para que elas saibam o que existe e possam decidir-se por aderir ou não. (…)

Publicamos este tipo de escritos há tantos anos que a sua feitura entra numa rotina e não pensamos sobre eles. Preocupamo-nos apenas que obedeçam a certas características. As rotinas são terríveis. Fazem-nos perder a inquietação, a dúvida, necessárias ao aperfeiçoamento.

As observações que se seguem centram-se sobre o que nós, Culturgest, fazemos. Os exemplos que dou retirei-os do programa de abril a agosto deste ano. Dito isto, acrescento que conheço muitos programas, portugueses e estrangeiros, do tipo do nosso e não me parece que sejamos uma exceção.

O que pretendo (…) é suscitar a reflexão, provocar pensamento, estimular a crítica das pessoas que leem e das pessoas que escrevem. Sem certezas absolutas. Esperando que o que vou dizer interesse a qualquer pessoa que goste de folhear este programa.

*

Não é fácil escrever sobre espetáculos (uso esta palavra para significar espetáculos, exposições, filmes, etc., todas as manifestações artísticas, individuais ou coletivas, que fazem parte da programação).

A palavra está ausente em muitos deles. Quando não está, é um elemento entre outros. A arte, que não seja a literatura, faz parte de um mundo que está para além da palavra, que a palavra só de uma forma modesta alcança. Como temos que falar sobre ela, a arte, usamos, evidentemente, a linguagem verbal. O que nos obriga a encaixar nessa linguagem o que nela não cabe ou lhe é mesmo estranho. Esta é uma dificuldade a que não podemos escapar e que está presente em todos os textos. Mas há outras.

Os escritos têm uma dimensão máxima, para caber no espaço disponível, e mínima, para dizerem alguma coisa. Exigem conhecimentos específicos consoante as “disciplinas” (o teatro, a dança, as várias músicas, as artes visuais…). São feitos em prazos curtos. No nosso programa são redigidos por pessoas diversas a que não se segue um trabalho de uniformização porque não conseguimos fazê-lo.

Com frequência se anuncia um espetáculo que na altura em que é divulgado ainda está a ser criado. Como falar do que não se sabe ao certo o que vai ser? Nesses casos publicamos textos que, segundo as indicações dos artistas (algumas vezes são eles que os escrevem), pretendem dar uma ideia, um ambiente, uma sugestão do que se poderá ser. Não se consegue mais do que isso. O resultado, para mim, é que quase nunca percebo o que me espera. O que me faz pensar: se eu não percebo, é provável que muita gente não perceba. Porque é que publicamos uma coisa que as pessoas não percebem? Não haveria forma de tentar, com os artistas, uma melhor aproximação? Não sei, mas o mais provável é não termos feito tudo o que poderíamos fazer.

Deixemos as dificuldades e passemos a examinar os textos e os tiques que usamos.

Se os olharmos com um bocadinho de atenção, verificamos que há comportamentos que se repetem.

Um deles é a enfatização. Os artistas (ou as obras) são um dos melhores, um dos mais interessantes, um dos maiores, um dos mais significativos, um dos mais estimulantes, um dos… qualquer coisa. É um tique generalizado, não exclusivo deste tipo de textos. O objetivo dessa expressão é dizer a quem lê que aquele artista, aquela obra, pertencem a um grupo que está acima, ou muito acima, da média, o que é razoável como informação. O problema é que a expressão generalizou-se. Nós (e todos os teatros), dizemos que tudo o que apresentamos pertence a essa minoria superlativa. Sendo assim, a expressão perdeu sentido e força.

Os espetáculos quase sempre únicos, irrepetíveis, imperdíveis. Adjetivos como fascinante, belíssimo, exímio, extraordinário, surpreendente, entusiasmante, magnífico, e muitos outros, abundam.

A enfatização é insaciável. Os adjetivos vêm em modas e vão perdendo força. Começam a usar-se superlativamente: belo, não chega; passa a muito belo e rapidamente a belíssimo. A certa altura são substituídos novos adjetivos, mais na moda, que se julgam mais enfáticos. Agora, por exemplo, usa-se muito, também na linguagem corrente, fantástico, para dizer que é coisa boa. Melhor que boa. É verdade que, segundo o dicionário, um dos sentidos da palavra é “que suscita a admiração”, “extraordinário” (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora), mas não era um uso corrente. Não tarda é substituída por outra palavra.

Acabarmos com a enfatização (…) levanta uma dúvida. Enfatizar já perdeu significado. Mas não o fazer pode ganhar um outro, o de menoridade do que se refere. Se não elogiamos, como sempre e todos fazem, o leitor pode ficar com a sensação de que não é grande coisa aquilo sobre que estamos a falar.

Socorremo-nos da opinião de outros, conheçamo-los ou não, que a maioria das pessoas que nos leem decerto não sabem quem são, transcrevendo frases encomiásticas. Como que a dizer: atenção, não somos só nós que dizemos que é bom, há mais quem o faça!

Implícita nesta atitude, mesmo que não tivéssemos pensado nisso, há a suspeita, ou a certeza, que a nossa opinião não é muito de fiar…

Presumimos que qualquer leitor sabe o significado de tudo o que escrevemos, mesmo quando usamos expressões como “signo linguístico”, “teatro ecosófico”, bebop, cool ou modal, “poética ambígua do visível” , “objeto poemático”, ou referimos nomes de autores, artistas, museus, etc., etc. Como se as pessoas, todas as pessoas que nos leem, fossem obrigadas a saber o que sabemos e, se não sabem, não merecessem desfrutar das pepitas que temos para lhes mostrar.

Sem querer, passamos a usar um jargão que não se dirige a toda a gente, mas a um grupo restrito de “pessoas do meio”. Escrevemos com frequência palavras como projeto, proposta, convocar, percurso, viagem, criativamente, processo criativo, encontro, universo artístico, emergente, etc., etc. São todas palavras compreensíveis, mas a recorrência e a combinação entre elas e muitas outras, constituem uma linguagem específica, identificadora da pertença a um grupo. Como acontece com todos os grupos, dos adolescentes aos cientistas (cada disciplina tem o seu vocabulário próprio), dos juristas aos economistas, etc.

O jargão sobrepõe-se à nossa vontade. Surge como o estilo natural de escrever sobre certa realidade. Não conseguimos falar dessa realidade sem usar essa linguagem. Não temos outras palavras ou não as conseguimos encontrar. Mas ao fazê-lo não estamos a dirigir-nos a toda a gente.

Poderia continuar. Mas acho que já basta. Para quem nos lê e vem à Culturgest, está aqui uma possível autocrítica. Que nos desculpem. É bem provável que não tenhamos emenda. Que ao menos tenhamos consciência disso…

Recordar é viver

Quando se tem uma certa idade, comprazemo-nos em recordar “os bons velhos tempos”. O que é que isto quer dizer? O que quer dizer “recordar é viver?”

Recordar não é reproduzir factos ou emoções passadas, coisa obviamente impossível. O passado não volta. Recordar para viver, penso eu, é provocar em nós e nos outros emoções a partir do que nos lembramos de factos, acontecimentos, estados de alma,  que já se passaram. Ou que pensamos se passaram. A memória não só é seletiva como é criadora. Lembro-me de factos que não ocorreram.

Provocamos essa criação que julgamos derivar do passado para nos deleitarmos no presente. Vamos aí buscar prazeres que o presente só nos dá se os trouxermos dessa forma. É um privilégio dos mais velhos.

Recordar não é viver. Vivem-se, às vezes, sozinhos ou acompanhados, emoções, pensamentos, que se referem ao que pensamos ser o passado. Vive-se a recordação, não é a recordação que nos faz viver.

Os “bons velhos tempos” são resultado da imaginação. A imaginação é um exercício de memória. Todos nós, a partir de certa altura, temos “bons velhos tempos”. Mesmo que para quem acompanhou a nossa vida, seja difícil descobrir onde eles estão. Porque esses tempos não existem, são criados por nós. Sozinhos, ou acompanhados.