Nobel ou Dylan

 

Haverá dois factos que levam a que a atribuição do prémio Nobel a Bob Dylan seja mais discutida do que casos anteriores. O primeiro, ser o autor muito conhecido, figura popular, familiar para muitos, ao contrário de todos os outros prémios Nobel – exceção feita ao agora também ressuscitado Winston Churchill. O segundo, dever-se a sua fama não à literatura mas à música (“popular”). A conjugação de ambos levou a que se lessem argumentos a favor e contra que dizem muito sobre a vontade de quem os disparou.

De uma forma muito esquemática classificam-se os que são contra a atribuição do Nobel como defensores da preservação da nobreza de uma arte e da sua tradição, e os que são a favor como gente que procura abrir fronteiras e nisto encontrar lugar para minorias deitando abaixo os muros elitistas ou normativos de uma hegemonia poderosa. O Nobel para Bob Dylan serviria assim como símbolo de uma pequena revolução de mentalidades, etc. Houve outro tipo de argumentos, casos intermédios, gente que não se coloca claramente de um ou de outro lado, falam de desperdício ou dizem-se contentes e por aí fora, mas claramente as discussões mais acesas, como aliás seria de prever, caminharam e caminham neste eixo que discute fronteiras entre artes e identidade.

É porque Bob Dylan “é músico” que uns consideram o Nobel desajustado e outros certeiro. É porque Dylan é músico que uns dizem que assim se abre caminho a que os próximos sejam Leonard Cohen, Eminem ou …, e é porque ele é músico que se invoca Christopher Ricks, teses de doutoramento, história da literatura (os bardos, cantigas de amigo…) ou livros vendidos. Discute-se a qualidade do que Dylan escreveu apontando para estrofe ou verso e sublinhando: isto é literatura! Ou, pelo contrário, com o indicador ainda: isto não é literatura! E discute-se pois por arrasto o que é e não é a tal literatura, como se recuássemos 100 anos a um modernismo imberbe. Mais: apesar de noutros contextos se admitir sem pudor a dificuldade em distinguir qual é a melhor e a pior literatura, num caso como Dylan, dada a fragilidade da posição em que é colocado, ele só pode ser ótimo ou mau[1], só pode ser poeta ou não-poeta. É a sua genialidade que merece o Nobel, é a sua popularidade (é pop) que o desmerece.

De acordo com estas vontades, Dylan está refém de uma ideia de identidade que dá a mão às categorias, aos géneros, às caixas. Ser músico, ser poeta, ser mulher, ser pessoa, ser. Este é o lugar onde se sabe o que é e o que não é, o lugar onde tudo já é o que pode ser ou não ser. Não ser é propor a revolução, é inventar a novidade, é alargar a fronteira. Tanto o ser como o não ser exigem congruência, perfeição, porque são objeto de escrutínio violento pelas vontades que o habitam.

Por isso argumentar contra uma visão conservadora da literatura, que exclui Bob Dylan do seu campo, afirmando “Dylan é literatura” significa jogar no mesmo tabuleiro do que se contesta, validando e reforçando um esquema que não serve nenhuma identidade. É esta a contribuição do Prémio Nobel: tornar visível e eventualmente fortalecer uma ordem que sujeita e captura identidades e cujo poder parece ser difícil se não mesmo impossível de contestar.

Perante o nó górdio em que se acha enredada a discussão à volta deste prémio, e de onde Nobel parece sair sempre a ganhar, o gesto mais estimulante que observei nos últimos dias foi o de uma espécie de aparente negligência (e não recusa) de Bob Dylan, remetido a um silêncio que nem parece ser silêncio mas simples desinteresse. Este gesto que, admito, pode vir a revelar-se ser outro e não o que dele entendo, desloca-se do eixo literatura ou não literatura, do merece ou não merece, do é bom ou não é bom, e posiciona Bob Dylan num lugar de onde é capaz de colocar em causa a identidade do prémio, da academia e da instituição, devolvendo como um espelho o poder que sobre ele é exercido.

 

[1] O desequilíbrio ou falta de simetria entre os adjetivos nos dois eixos (ótimo vs. mau – e não péssimo) justifica-se pelo facto de Dylan ser um underdog, um estrangeiro a tentar vingar no terreno alheio.